segunda-feira, 6 de julho de 2009

O Mito do TGV

(a publicar nos próximos números do Jornal "o riachense")

Ao longo dos últimos meses, o espaço da discussão política tem-se centrado, em larga medida, no debate em torno da necessidade e/ou oportunidade do projecto da alta velocidade ferroviária em Portugal, leia-se, TGV. Este exercício de nihilista sofística levado ao extremo pelos principais rostos dos partidos políticos com representação parlamentar e, repetido posteriormente, até à náusea, pelos arautos da comunicação social que, escudados na pretensa objectividade jornalística, têm feito campanha ora num ora noutro sentido, conforme a orientação e linha editorial do órgão, bem como dos interesses ocultos que servem, em nada tem contribuído para o debate sério e esclarecedor que se impõe face a tão importante temática.

Não cabe neste pequeno texto uma reflexão acerca do papel dos media na manipulação da opinião pública, nem tampouco nos permitiremos a ousadia de maçar o leitor com súmulas de estudos técnicos, ou análises de viabilidade económica do projecto de alta velocidade e outros que tais. Existem imensos e estão disponíveis para consulta na Internet. No final deixaremos algumas sugestões de leitura de documentos online para todos quantos tiverem interesse em ir um pouco mais longe e poder, ao contrário da maioria, discutir o assunto com base em alguma informação e reflexão próprias e não pela mera repetição dos argumentos de terceiros, não raras vezes, também eles insuficientemente conhecedores da matéria que discutem.

Assim e, de molde a não estender demasiadamente este texto, comecemos por esclarecer algumas questões, cujo desconhecimento tem provocado a reprodução, por parte de muitos opinion makers intelectualmente desonestos ou, simplesmente, deficientemente informados sobre esta temática, de juízos incorrectos e/ou de todo falaciosos.

Há desde logo que desfazer um equívoco comum. No transporte ferroviário de passageiros não convencional, existem dois conceitos concorrentes: a Alta Velocidade (AV) e a Velocidade Elevada (VE). No primeiro caso falamos de soluções em que o conjunto composto pela infra-estrutura ferroviária (linha) e o material circulante (comboios) dispõem de características técnicas capazes de garantirem velocidades máximas superiores a 250 km/h (embora seja mais comum a variante 300 a 350 km/h). Na opção de VE, as velocidades máximas não ultrapassarão os 200 a 250 km/h, dependendo das condições da linha. Acresce que, neste último caso, poderá, não ser necessária a construção de raiz de uma via ferroviária, podendo aproveitar-se troços já existentes. Na outra solução, tal assume-se como requisito fundamental.

A título meramente ilustrativo, e numa hipotética ligação Lisboa-Porto assumindo uma distância de 300 km entre as duas cidades e uma velocidade média na viagem situada nos intervalos mínimos apresentados, o percurso seria percorrido em 60 (AV) ou 90 (VE) minutos. Claro que os valores apresentados não reflectem a realidade, são meramente indicativos, visto que os tempos reais serão sempre superiores. A ideia aqui é demonstrar que, em média, a opção VE representará um acréscimo de 50% no tempo de deslocação face à AV.

Outra indicação importante é a que decorre das condições da via (no caso, ferroviária). Tal como na rodovia, também o traçado, o relevo e o próprio congestionamento da infra-estrutura influenciam decisivamente o desempenho dos veículos. Assim, por exemplo, uma linha ferroviária com curvas constantes e apertadas, com declives acentuados (estas duas, variáveis de fulcral importância neste particular), e com muito tráfego, não poderá, em circunstância alguma proporcionar um nível de oferta satisfatório. Para que esta ideia seja mais facilmente compreendida, imaginemos uma viagem de automóvel Lisboa-Porto pela EN1 e pela A1. Desta analogia resulta que a opção pela EN1 representará, em circunstâncias de utilização normal, um acréscimo de várias horas no percurso. O nível de congestionamento, o traçado, o cruzamento de inúmeras povoações, o trânsito mais lento, as restrições de velocidade, etc., implicarão uma viagem muito mais longa, e stressante também. Um veículo utilitário, por mais modestas que sejam as suas prestações, completará o percurso em menor tempo utilizando a A1, do que o mais poderoso dos desportivos optando pela EN1. Mesmo considerando que este último condutor não respeite os limites de velocidade impostos.

De modo a que não subsistam dúvidas explicite-se o sentido do parágrafo anterior. A actual Linha do Norte corresponde à EN1. A construção de uma linha de alta velocidade (independentemente se é Lisboa-Porto, Lisboa-Madrid, ambos, ou outros quaisquer trajectos) representará um benefício idêntico ao trazido pela auto-estrada. A alta velocidade ferroviária está para os comboios, como a auto-estrada para os automóveis. A linha de alta velocidade é, para todos os efeitos, uma auto-estrada ferroviária. E, isto deve ser dito, explicado e compreendido por quem pagou a auto-estrada e por quem terá de pagar a linha ferroviária: o contribuinte! E, o exercício atrás proposto para os automóveis mantém-se igualmente válido para os comboios. Coloquemos o mais rápido da actual geração de comboios a circular na Linha do Norte e o resultado será idêntico ao alcançado pelo potente desportivo na EN1…

O raciocínio atrás exposto coloca, por conseguinte, questões adicionais que importa igualmente clarificar. Enunciaremos apenas algumas, visto ser impossível, sem incorrermos em vícios de ininteligibilidade e na enumeração de infinitos e enfadonhos detalhes técnicos abordar todas quantas carecem de resposta. Primeiro: a desactualização da Linha do Norte. Segundo: o problema da bitola. Terceiro: a remodelação ainda por concluir da Linha do Norte. Quarto: a saturação da Linha do Norte. Quinto: os problemas decorrentes da exploração, na mesma linha, de conceitos totalmente diferentes de serviço. Sexto: devemos comprar apenas comboios ou investir numa nova infra-estrutura? Sétimo: há dinheiro para o projecto? Oitavo: qual o retorno expectável de um investimento desta envergadura?

Comecemos. A Linha do Norte foi concluída em 1877 com a inauguração da Ponte Maria Pia, no Porto. Conta, portanto, 132 anos, no troço mais recente. O seu traçado, projectado no século XIX, poderia ser adequado às necessidades da época. Porém, não será necessário socorrer-nos de estudos muito detalhados para constatarmos a sua evidente desactualização face às exigências impostas pelo contexto actual. Traçado, problemas de estabilidade das plataformas em algumas zonas, atravessamento de áreas susceptíveis de inundação e outras densamente povoadas, etc.. Ademais, saliente-se que as obras de beneficiação em curso, foram projectadas ao tempo do Estado Novo, donde decorre que, já nessa altura se preconizava a necessidade de actualização das condições. Ora, de há quarenta anos a esta parte muita coisa mudou na sociedade portuguesa, pelo que se dispensam quaisquer adicionais considerandos.

Em segundo lugar, há a esclarecer que, no século XIX, a memória das Invasões Francesas encontrava-se ainda muito presente e, o medo que o caminho-de-ferro pudesse potenciar e facilitar uma repetição de tão trágicos acontecimentos, determinou que, num esforço concertado à escala ibérica, portugueses e espanhóis se tivessem voluntariamente isolado do resto da Europa. Assim, para lá dos Pirenéus, vigorou (na maioria dos países, e nos principais eixos ferroviários) desde sempre a bitola standard (1435mm entre os dois carris, que corresponde justamente a um bitola – medida do sistema inglês e que foi utilizada nos primeiros caminhos de ferro construídos bem como na locomotiva de Stephenson); em Portugal e Espanha usa-se a bitola ibérica, a que corresponde uma distância entre carris de 1668mm.

Desde há anos que, em Espanha, se trabalha na correcção deste (ainda que compreensível ao tempo) erro histórico, com consequências dramáticas em ambos os países. Além de terem desenvolvido um sistema que permite que a transição entre bitolas se faça com o comboio em andamento (através de eixos telescópicos nas composições que encolhem ou abrem quando passam nos intercambiadores – que mais não são do que um pedaço de linha, com cerca de um quilómetro, no qual a distância entre os carris vai progressivamente transitando – alargando ou estreitando – entre uma e outra bitola), nuestros hermanos à medida que vão remodelando as linhas vão instalando travessas bi-bitola (isto é, travessas que permitem a colocação de um terceiro carril possibilitando, por conseguinte, a coexistência, na mesma linha, de duas bitolas: standard e ibérica – quando o processo de migração para a medida padrão de todo o material circulante estiver concluído, bastará levantar um dos carris e a linha disporá apenas de bitola standard).

Em Portugal, e não obstante esta solução ser conhecida há mais de uma dezena de anos, persistimos no erro. Os troços já concluídos da interminável intervenção na Linha do Norte, mantêm unicamente a bitola ibérica e as travessas instaladas não possibilitam a colocação de um terceiro carril.

As composições de AV foram desenvolvidas para circularem em linhas de bitola standard e não na distância ibérica. Em Espanha as linhas nas quais circula o AVE (Alta Velocidad de España, uma divisão da RENFE que corresponde à CP espanhola), são exclusivamente em bitola standard (tais como as francesas de TGV, Train de Grand Vitesse, as alemãs de ICE, Inter City Express, as japonesas de Shinkansen, ou inclusive aquelas onde circula o Eurostar – o comboio que liga Londres-Paris-Bruxelas pelo Eurotúnel).

A Linha do Norte encontra-se em remodelação há quase duas décadas: os estudos datam de 1988, o início dos trabalhos de 1991. 1993 foi a data inicialmente prevista para a conclusão de um investimento orçado em cerca de 75,8 milhões de euros, que permitiria a ligação entre Lisboa e Porto em 2h15m. Decorridos 18 anos, a modernização encontra-se concluída em aproximadamente dois terços da extensão total da infra-estrutura. O investimento derrapou e poderá atingir mais de 1600 milhões de euros. A redução alcançada no tempo de viagem entre Lisboa e Porto cifra-se em cinco minutos, mesmo considerando a utilização dos comboios do tipo pendolino (conceito de origem italiana, que assenta no facto de a caixa das composições possuir a capacidade de oscilar nas curvas, permitindo deste modo que as mesmas possam ser efectuadas a velocidades superiores àquilo que seriam com material sem estas características – entre nós, o Alfa Pendular é um comboio deste tipo e foi introduzido justamente porque se pensava que, com a remodelação da Linha do Norte este tipo de comboios permitiria o alcance do objectivo de 2:15 horas na viagem Lisboa-Porto, investimento que os factos hoje demonstram de forma clara e ineqvívoca ter sido um erro, não obstante a qualidade deste tipo de material circulante). E, convém lembrar que, mais tarde ou mais cedo, o que foi remodelado terá de ser re-remodelado, quanto mais não seja para cumprir a migração de bitola. Acrescente-se ainda que o troço entre Braço de Prata e Alverca foi intervencionado duas vezes. Na primeira ocasião foram apenas substituídas as travessas de madeira pelas de betão e o balastro. Mais tarde, e em virtude de problemas de segurança detectados nos ensaios das composições do tipo pendolino, toda a estrutura, incluindo a “caixa” sobre a qual assentam as travessas teve de ser recuperada, uma vez que o não tinha sido antes…

A quarta questão que atrás lançámos, dizia respeito à saturação da Linha do Norte que, segundo notícias recentes, impede a CP de aumentar a oferta de comboios e, por inerência de crescer e apresentar um serviço de maior frequência e qualidade. Vários críticos da AV têm postulado que a ligação entre as linhas do Oeste e do Norte, bem como a conclusão, prevista, embora nunca concretizada, do Ramal de Tomar até Coimbra, poderia resolver a situação. É óbvio que se trata de uma questão pertinente e que deveria merecer estudos sérios. Tendo-se, porém, constituído a Linha do Norte, como principal eixo ferroviário do país, não parecem (ressalvando eventuais estudos em sentido contrários que não se encontram disponíveis) credíveis tais hipóteses. É que, estudos apontam para a necessidade de, no sentido de permitir um aumento da oferta, a Linha do Norte tenha de ser quadruplicada em quase toda a sua extensão: em suma, fazer-se uma linha nova. As soluções propostas, ainda que devam merecer um estudo aprofundado, não se parecem constituir como solução, visto não existirem nesses troços passageiros potenciais em número suficiente para viabilizar tal investimento. Quando muito constituiriam alternativas para o transporte de mercadorias que é realizado, maioritariamente, em período nocturno.

Colocar, numa mesma linha, comboios que podem circular a velocidades tão díspares como 40 a 60km/h (no caso do transporte de mercadorias) e 220km/h (no caso do Alfa Pendular), para mais tratando-se de “monstros” que necessitam de distâncias imensas para travar e acelerar e tomando ainda como referência o actual esgotamento da Linha do Norte, parece-nos, no mínimo, uma ideia contraproducente. Sabendo-se que os mais lentos não poderão, até por razões de segurança (carga/distância de travagem), circular a velocidades mais elevadas, terão obviamente que os mais rápidos ser sacrificados nas suas prestações. Os resultados são conhecidos: o tempo de 2:15 horas previsto em 1991 para uma viagem entre Lisboa e Porto a partir de 1993 mantém-se, actualmente, em 2:55 horas e pode resvalar, dependendo do número de paragens efectuadas, até quase 3:30 horas. A uma média de 200km/h os Alfa Pendular (que são composições para VE, informação que raramente é publicamente divulgada) poderão cumprir a distância em 90min. O problema não está portanto nos comboios, antes na linha, o que nos leva, retomando o guião anterior, à sexta questão: devemos comprar apenas comboios mais rápidos?

Como se depreende do raciocínio que vem sendo desenvolvido, obviamente, que o problema se encontra na Linha do Norte, nas suas condições estruturais, traçados, estações, curvas e pendentes, estabilidade de plataformas, atravessamento de áreas densamente povoadas, zonas de cheias, etc.. A solução do problema passa portanto pela construção de uma infra-estrutura de raiz, com condições de segurança, traçado, e demais conducentes a um serviço rápido, eficiente e seguro. Os comboios para VE já nós possuímos. Não conseguimos é, face às condições da actual Linha do Norte, retirar deles o máximo desempenho. Deve aliás, esclarecer-se que, em nenhum troço da Linha do Norte os Alfa Pendular se podem sequer aproximar dos 200 km/h.

Questão: deverá construir-se uma linha preparada para AV ou VE será suficiente? Na ligação internacional (Lisboa-Madrid), e de molde a obter-se uma alternativa competitiva e vantajosa face ao transporte aéreo, não restarão quaisquer dúvidas quanto à necessidade de uma opção pela AV, mesmo considerando os custos de construção e de conservação da linha substancialmente mais elevados face à VE (na ordem dos 50%) segundo alguns críticos da AV.
Nos percursos domésticos (Lisboa-Porto; Lisboa-Faro-Huelva; Aveiro-Vilar Formoso; Porto-Vigo) a questão não será tão consensual. No caso de Lisboa-Porto, se hoje 90 a 120 minutos nos podem parecer aceitáveis, dentro de uma década ou duas, poderá não ser assim. E, convém lembrar que, um: o investimento perdurará por bem mais do que duas décadas e, dois: já temos a experiência da A1: os custos das obras de alargamento, decorridos menos de 20 anos após a conclusão, e não nos referimos unicamente aos encargo das obras propriamente ditas, mas também aos sociais, (acidentes, filas de trânsito, riscos acrescidos para utentes e trabalhadores, aumentos de tempo nas deslocações, etc.), certamente ultrapassaram aqueles que teriam sido gerados se a auto-estrada tivesse inicialmente sido construída com três faixas de rodagem em cada sentido, em toda a sua extensão. Em qualquer dos casos, embora pareça mais prudente a avisado um maior esforço no presente em favor de ulteriores poupanças, a questão deveria ser alvo de profundos estudos.

Acresce ainda ao acima exposto que o investimento a realizar na aquisição do material circulante é absolutamente irrelevante no quadro do projecto: cada comboio de AV custará, a preços de 2003, aproximadamente 20 milhões de euros. Admitindo que se adquiram 20 unidades, tal implicará 400 a 500 milhões de euros num universo de 7,7 mil milhões o que corresponderá a pouco mais de 5% do investimento total. Uma ninharia, portanto. Os 10 Alfa Pendular custaram em 1998 cerca de 125 milhões de euros. Contabilizando a inflação, conclui-se que o preço por unidade não há-de ser muito diferente entre uma e outra opção.

Em suma, o grosso dos encargos decorrerá da construção das novas linhas: entre Lisboa e Porto e entre Lisboa e Elvas, não das composições, e muito menos de uma possível opção entre AV e VE, cujo agravamento na factura final se circunscreve à construção das infra-estruturas e não será, mesmo seguindo as teses dos críticos mais radicais de um projecto de AV, superior a 50%. Num momento em que se discute uma terceira auto-estrada entre Lisboa e Porto, porque não equacionar-se a construção de uma auto-estrada ferroviária que poderia, além de aliviar o trânsito nas duas já existentes, aliviar ambos os aeroportos e, não menos importante, a actual Linha do Norte.

Sétima questão: existem possibilidades económicas de, no actual contexto, se avançar com o projecto. Refira-se, desde já, que o projecto contará com 20% de financiamento comunitário (se tivesse ficado concluído até 2000 a comparticipação europeia ascenderia a 80 ou 85% e entre 2000 e 2007 teria descido para 65 a 75% - a linha do AVE Madrid-Sevilha recebeu de Bruxelas ajudas superiores a 80%). O Estado arrecadará directamente mais 20% (decorrentes do pagamento de IVA) e indirectamente 25% (em sede de IRC) sobre os lucros das empresas envolvidas, 34,5% sobre os salários brutos dos trabalhadores (através das contribuições obrigatórias para a Segurança Social), IRS dos trabalhadores (dependendo do escalão). Porém poupará os subsídios de desemprego pelos empregos que se criarão, directa e indirectamente com as obras e posterior exploração. Ademais a criação de empregos não contemplará apenas os directos: há que contabilizar as empresas a montante, bem como os possíveis empregos decorrentes do aumento de consumo gerados por esses trabalhadores, etc., etc., etc., Entre as verbas arrecadas por via directa (pelo menos 40%) e as obtidas indirectamente (impossíveis de contabilizar senão por especialistas), estamos em crer que nunca serão inferiores a 66%, podendo mesmo atingir valores superiores. Determinantes, neste contexto, serão as habituais derrapagens… Parece-nos, portanto uma falácia, mesmo no quadro actual de crise, dizer-se que não há dinheiro. Certamente será mais necessária uma terceira auto-estrada Lisboa-Porto, dois submarinos, e por aí em diante… Será ainda importante lembrar os 1600 milhões desperdiçados na remodelação da Linha do Norte sem que daí se haja obtido algum encurtamento nos tempos de viagem, os 125 milhões nos comboios pendulares, os 98 milhões dispendidos em estudos de 2000 a 2008, repetindo a maioria dos estudos realizados entre 1987 e 1992. Entre o dinheiro deitado à rua e o perdido em ajudas comunitárias que não iremos receber por via dos adiamentos sucessivos, a alta velocidade ter-nos-ia ficado de borla. São os erros (passados e presentes) dos nossos políticos que fazem hoje do projecto de AV, um projecto caro. São estes erros que a Comunicação Social, habitualmente conivente e promíscua com o poder (bastará cruzar os relacionamentos políticos com a titularidade dos órgãos de informação para ser perceberem os interesses ocultos) pretende, a todo o custo esconder, bramindo em consequência o argumento intelectualmente desonesto e economicamente falacioso do investimento exorbitante necessário ao TGV…

Saliente-se, porque se trata de informação igualmente relevante, que os primeiros estudos sobre AV em Portugal datam de 1987, sendo aliás contemporâneos dos espanhóis. Volvidos 22 anos, em Portugal continuamos a estudar (98 milhões de euros foram dispendidos em estudos entre 2000 e 2008), em Espanha, nuestros hermanos, inauguraram no ano passado a terceira ligação de AV, Madrid-Barcelona. Nós estudamos, eles apresentam obra…

Oitavo: quanto a retornos expectáveis, os mesmos poderão ser colocados a vários níveis: directos, através da emissão e venda de bilhetes, e indirectos os quais abrangem inúmeras áreas. No primeiro caso, há que referir que a primeira linha do AVE (Madrid-Sevilha), que entrou em exploração comercial por ocasião da exposição mundial de Sevilha em 1992, atingiu lucros de 50 milhões de euros logo em 1997.

Evidentemente que lucros de exploração no valor de 50, ou mesmo 100 milhões de euros anuais, demorarão quase um século a amortizar a totalidade do investimento. É por isso que se trata de uma obra pública: a sua construção não está, ou não deverá estar, sujeita aos mesmos critérios economicistas que (legitimamente) norteiam os projectos da iniciativa privada. É por esse motivo que se justifica a comparticipação dos fundos comunitários. Até porque os benefícios para a comunidade não se resumem apenas ao facto de o investimento ser ou não capaz de gerar receitas para se pagar por si.

Existem muitos outros factores de extrema relevância, uns quantificáveis monetariamente, outros nem por isso, ainda que, todos de enorme importância. Registe-se apenas, e sem quaisquer preocupações de rigor, que nas rotas onde a AV representa uma alternativa ao transporte aéreo, a quota de mercado alcançada pelo transporte ferroviário é sempre superior a dois terços do total (em muitos casos até a 85%) e tais taxas são atingidas em poucos meses.

Uma boa ajuda quando se discutem a construção de um novo aeroporto em Lisboa e de uma terceira auto-estrada entre Lisboa e Porto. Mas poderemos referir muitos outros dados. Tratando-se de um meio de transporte substancialmente menos poluente do que o avião ou o automóvel, o comboio apresenta evidentes vantagens ecológicas, para mais num quadro em que Portugal terá de reduzir não apenas a dependência energética face ao exterior, como também de suportar custos decorrentes da ultrapassagem dos limites das quotas de emissão de gases provocadores do efeito de estufa, nomeadamente, o CO2.

Acrescente-se ainda a maior comodidade e segurança (face ao automóvel, pelo menos) de uma viagem por ferrovia, a maior rapidez face a ambos os concorrentes (válido para Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid, se optarmos por AV), o menor stress dos passageiros, a possibilidade de trabalhar, descansar ou relaxar durante as viagens, a diminuição das filas de trânsito, a diminuição de tráfego na Linha do Norte que abriria corredores para mais e mais transporte ferroviário de mercadorias, libertando as auto-estradas de boa parte da circulação de veículos pesados, com evidentes benefícios não apenas ao nível do descongestionamento, como igualmente da própria manutenção dos pavimentos, sabendo-se que o desgaste provocado por um pesado de mercadorias equivale ao provocado por muitos automóveis, entre inúmeros outros benefícios impossíveis de contabilizar, como o incremento na mobilidade dos passageiros, da actividade económica, da integração cultural com Espanha, etc..

Atentemos no seguinte exemplo: um passageiro necessita de viajar entre Lisboa e Porto. Se optar pelo comboio, os seus custos resumir-se-ão ao bilhete (27€+27€ com possibilidade de desconto de 10% no caso de aquisição de título de ida e volta e de 25% no caso de reserva com 7 dias de antecedência em Alfa Pendular, classe turística) e eventualmente táxi ou outro transporte urbano. Se optar pelo automóvel, além das portagens, do combustível, do estacionamento, há ainda que considerar o desgaste do veículo e, nunca devidamente contabilizado, o do próprio condutor. Além de que o decurso de viagem resulta em tempo improdutivo, ao passo que o de comboio pode ser rentabilizado. Admitindo que a duração da viagem seja semelhante, o custo não o será certamente: 19,95€*2 de portagem, 40€ de combustível, fazendo as contas por baixo, a que acrescem desgaste da viatura e estacionamento. Mesmo para dois passageiros, o comboio continua a ter vantagem económica. Ou seja, já hoje o comboio é mais rentável. E apenas não o é mais devido aos graves erros que têm sido cometidos ao longo de anos e anos pelos sucessivos governos.

Se os nossos governantes tivessem sido capazes de ver um pouco mais além e tivessem tido a coragem de concretizar o projecto de AV durante a década de 90, teríamos hoje um transporte entre as duas principais cidades do país e nas ligações internacionais moderno, rápido, cómodo, competitivo e, mais importante, rentável, também porque, na sua esmagadora maioria custeado pelos fundos da União Europeia…

Porém a influência dos habituais Velhos do Restelo, os mesmos que condenaram há 500 anos a expansão marítima e há século e meio a construção da Linha do Norte, permanece demasiadamente enraizada na sociedade portuguesa.

Algumas referências:
http://www.rave.pt;
http://manueltao.spaces.live.com;
http://www.maquinistas.org;
http://www.renfe.es/ave/;
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cronologia_do_Caminho-de-ferro_em_Portugal;
http://sol.sapo.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=21569;
http://www.oribatejo.pt/index.php?lop=conteudo&op=812b4ba287f5ee0bc9d43bbf5bbe87fb&id=747ac0e3a7f4b8a385b039573b4ac3c5;
http://www.aecops.pt/pls/daecops2/pnews.build_page?text=18849734;
http://socgeografia-lisboa.planetaclix.pt/transportes/lnorte.pdf;
http://www.maquinistas.org/pdfs_ruirodrigues/lnortembitola.pdf;
http://diario.iol.pt/sociedade/tgv-transportes-ana-paula-vitorino-alta-velocidade/1030308-4071.html;
http://www.correiodamanha.pt/noticia.aspx?contentid=00247705-3333-3333-3333-000000247705&channelid=00000011-0000-0000-0000-000000000011;
http://en.wikipedia.org/wiki/AVE;
http://es.wikipedia.org/wiki/Alta_Velocidad_Espa%C3%B1ola;
http://www.rave.pt/LinkClick.aspx?fileticket=ACJddMGarpU%3D&tabid=174&mid=796&forcedownload=true; http://www.transportesemrevista.com/LinkClick.aspx?fileticket=VuSCEfBAD8U%3D&tabid=372http://www.maquinistas.org/pdfs_hos/aforcadosnumeros.pdf;